Com a devida vénia, fica arquivado neste blog/baú este excelente texto, "onde Pedro Biscaia expressa gratidão ao Fernando e Isabel, pela criação de um lugar de memória e memórias".
"A sugestão do Zé Tomé e do João Damasceno, para que fosse eu a vir aqui testemunhar o apreço que todos temos pelo Fernando Grilo e pela Isabel João, pela sua aventura de quase 30 anos ao leme do Picadeiro, parece-me, no mínimo, inesperada e até, talvez, fora de contexto. Eu?... Eu que não sou de beber nem de comer, a quem o vinho provoca azia e as digestões são um processo difícil, o que é posso vir aqui dizer? Obviamente que não estou habilitado a comentar gastronomia ou enologia, os segredos da alquimia da confeção ou a seleção de castas adequadas a certas vitualhas.
Em boa verdade, dessas matérias não sei absolutamente NADA !
Todavia, o que facilita a missão de que fui incumbido, é a circunstância de ter conhecido e partilhado um lugar, que sempre foi muito para além do que um mero restaurante. Ali, à volta da mesa, todos aprendemos uns com os outros, num espaço de cultura que, tal como disse não sei quem, -“é o que fica, depois de tudo se esquecer”. O Picadeiro foi, provavelmente, o último herdeiro de uma rede de locais que ajudaram a construir a identidade da Figueira do sec. XX, nas tascas de raiz popular guardadas na memória coletiva da cidade, tais como o Púcaro e a Gaivota na Rua 10 de agosto, o Manel da Parreira e o Gato Preto, ali perto do Cais, o Barril na rua da República, o Barracão no Casal do Rato, o Socorro de Inverno na rua da Restauração, os Papagaios no mercado, o icónico 37 na rua dos Pescadores, a Adega Praia em Buarcos… estações de um roteiro iniciático de sociabilidade de várias gerações. E, além delas, as tabernas como o Feteira ou o Niza, a primeira preferida pelos marítimos e a segunda pelos estivadores ou ainda os cafés frequentados por tribos próprias, com clientes de condição social diversa e onde eram patentes as tendências políticas (mesmo às escondidas) clubísticas e sociais. A Nau era dos funcionários públicos, dos adeptos da Naval e, depois do 25 de abril, de ativistas de posicionamentos mais à esquerda. A Brasileira tinha a preferência dos apaniguados do Ginásio e do Sporting Figueirense e de uma elite pequeno-burguesa de bancários e comerciantes, da parte antiga da Figueira. O Café Brasil (conhecido por Zé do Lixo) era o apoio privilegiado dos passageiros das camionetas da rodoviária, que ali paravam. No Bairro novo, o Nicola, a Cristal, a Império, o Oceano ou o Europa tinham frequentadores diferentes entre si e todos eles eram diferenciados da clientela conservadora da Caravela. O Arnaldo era um poiso muito peculiar, onde se bebia e petiscava ao balcão e o anexo da Mercearia Encarnação era um recanto mais sossegado e discreto, no fim da tarde. Havia ainda, nas imediações da estação, a “Capela do Sol”, do Manuel Lopes, que tinha estatuto de santuário de tertúlia bairrista (mas com acesso restrito) e, na rua da República, o Café Paris, este, indicado para cavalheiros mais carentes de mimos e licores…
Neste roteiro de lugares, estava subentendido um código definidor de identidades específicas, um respeito por territórios conotados e, também, a procura dos que nos estavam mais próximos. Em todos eles, na sua diversidade, havia tertúlias quase sempre masculinas e, aos domingos, eram transformados em seletos salões familiares de galão morno e torradas com manteiga. Tudo isto eu o digo, apenas a escorropichar a memória do meu tempo *, sabendo que há quem o tenha estudado com profundidade e rigor. Por exemplo Guida Cândido (hoje reputada investigadora nesta área do saber) tem um estudo publicado, em 2014, pelo município da Figueira, sobre a célebre Tertúlia “Coração, Cabeça e Estômago” fundada por António Augusto Esteves, nos anos 30, e compartilhada por vultos figueirenses como Joaquim de Carvalho, Cardoso Marta, António Piedade, Mário Augusto e outros, cuja constituição e atividade cultural e gastrónoma, expressa em atas descritivas, vale muito a pena conhecer. Posteriormente, já nos anos 80, também existiu o Círculo de Gastronomia e Cultura da Região da Figueira, sob a égide de João de Lemos, Marcos Viana e Albarino Maia, em cujo estatuto se pode ler “Círculo porque todos são iguais, usufruem os mesmos direitos e deveres, todos ao redor da mesa partilham do mesmo pão (…) e Cultura porque gastronomia também é cultura”.
Ora, o Picadeiro foi o seguidor desse espírito gregário e de convivência, para além do cuidado posto nas ementas de referência tradicional, graças a perseverança do Fernando e da Isabel, em parceria com as imprescindíveis cozinheiras, com destaque para a Cristina, e os sucessivos empregados como o Gervásio, o Renato, o Rafael ou o Marcos, que levavam até à mesa, travessas de apuradas tentações. Por isso, estes dois nossos amigos, para além de proprietários e gestores de um restaurante foram, implicitamente, agentes culturais e catalisadores da sociabilidade democrática figueirense, onde todos encontraram um acolhimento feito de qualidade, simpatia e descontração, numa pluralidade de género, idade ou condição. Nessa medida, foi um lugar de culto, um pára raios de amizades, um aconchego para algumas solidões, uma praça de intercâmbios, onde pontificaram figuras tutelares da mesa e da conversa, como o Mário Moniz Santos ou o Joaquim Gil que, lamentavelmente, já não estão aqui.
A própria escolha do nome do estabelecimento - Picadeiro - remete para o mais conhecido espaço público de sociabilidade da Figueira, o mais antigo segmento pedonal da rua Cândido dos Reis, outrora poeticamente denominada rua da Boa Recordação, a âncora do Bairro Novo de Stª Catarina, qual passerelle de acesso ao Casino Peninsular, quando este era um edifício digno e frequentado pelo glamour de veraneio e quando o espaço comum de circulação era respeitado, ao contrário da ocupação desenfreada que hoje lá vemos. E, curiosamente, o “Picas” fica na esquina da rua que evoca o Académico Zagalo, o jovem estudante que comandou a libertação do Forte de Stª Catarina do jugo napoleónico, em 1808, e a rua Dr. Francisco Dinis, homem de visão larga, que foi um dos fundadores da Companhia Edificadora Figueirense, no final do sec. XIX. Ou seja, está na confluência toponímica da ousadia, da liberdade, do empreendedorismo e do amor ao desenvolvimento da nossa terra. Ele há cada coincidência…!
O “Picadeiro” do Fernando e da Isabel, o nosso “Picas”, era, também, uma espécie de casa familiar comum, onde quase todos se conheciam, pelo menos de vista e onde perpassava uma solidariedade entre pares. No meu caso pessoal, posso confessar que todas as minhas namoradas tiveram que lá ir à amostra e com o intuito de que melhor entendessem o que as palavras e até os gestos, nem sempre conseguem explicar. Ora, esse estatuto de casa de família, íntima, acolhedora, despojada de formalismo, com as paredes cobertas de lembranças como um álbum de fotografias, era o que sabíamos que podíamos esperar do Picadeiro e por isso, o fazíamos, um bocadinho, coisa nossa. Eramos todos dali, como nunca o fomos de outros lugares onde nos sentámos à mesa para comer. Era o lugar a que sempre regressávamos, à espera de um sorriso conhecido (como no verso do Manuel António Pina “regresso devagar ao teu sorriso como quem volta a casa”…), da graçola repetida, da novidade segredada, do picante da crítica figueirense, da lamúria do estado das coisas, da partilha do sentimento. Ali celebrámos vitórias e enterrámos derrotas, discutimos vinhos - eu não, claro… - vaticinámos resultados desportivos e eleitorais e sempre nos despedimos uns dos outros, até à próxima vez. Recomendávamo-lo a outros amigos e conhecidos, com palavras de confiança e até o atrevimento de sugerir que, quando lá chegassem, dissessem que iam da nossa parte.
Isto não tem preço ! Isto não consubstancia uma mera transação comercial !
O segredo do Fernando e da Isabel, na criação e sustento deste ambiente diferenciado e tão humano, esteve na paixão com que se entregaram ao seu projeto e o bom resultado foi o que se viu, com claro e indelével contágio em todos nós. Faz-me lembrar aquela história que conta que o jovem Kaiser Guilherme II da Prússia terá perguntado ao seu mestre de equitação, o que era mais importante: se a técnica, os arreios ou a montada. E este ter-lhe-á respondido: - a paixão do cavaleiro, Sire…a paixão; o resto vem tudo atrás!
Sim, foi um privilégio de vida passarmos pelo nosso “Picas”, porque ali cada um foi o que já era e o que recebeu dos outros e, assim tendo sido, aqui estamos a agradecer, com um sentido abraço, a quem foi nosso cúmplice na construção de amizades para a vida e nos proporcionou momentos de genuína felicidade.
Esse é o verdadeiro sedimento das coisas essenciais !
Ficamos agora, momentaneamente, despernados, com a bússola sem norte, talvez até com sentimento difuso de orfandade, mas… como cantava o Fausto “atrás dos tempos vêm tempos e outros tempos hão-de vir!”
Eis, como um gajo que de comida e bebida nada sabe, teve o desplante de vos servir esta caldeirada de afetos, com tempero de alegria, uma pitada de memória e um toque discreto de nostalgia.
*
E para acabar, parafraseando o Márinho, que de pequeno só tinha o diminutivo, digo agora:
“Ah meninos…!” vai um brinde à Isabel e ao Fernando!"
Em boa verdade, dessas matérias não sei absolutamente NADA !
Todavia, o que facilita a missão de que fui incumbido, é a circunstância de ter conhecido e partilhado um lugar, que sempre foi muito para além do que um mero restaurante. Ali, à volta da mesa, todos aprendemos uns com os outros, num espaço de cultura que, tal como disse não sei quem, -“é o que fica, depois de tudo se esquecer”. O Picadeiro foi, provavelmente, o último herdeiro de uma rede de locais que ajudaram a construir a identidade da Figueira do sec. XX, nas tascas de raiz popular guardadas na memória coletiva da cidade, tais como o Púcaro e a Gaivota na Rua 10 de agosto, o Manel da Parreira e o Gato Preto, ali perto do Cais, o Barril na rua da República, o Barracão no Casal do Rato, o Socorro de Inverno na rua da Restauração, os Papagaios no mercado, o icónico 37 na rua dos Pescadores, a Adega Praia em Buarcos… estações de um roteiro iniciático de sociabilidade de várias gerações. E, além delas, as tabernas como o Feteira ou o Niza, a primeira preferida pelos marítimos e a segunda pelos estivadores ou ainda os cafés frequentados por tribos próprias, com clientes de condição social diversa e onde eram patentes as tendências políticas (mesmo às escondidas) clubísticas e sociais. A Nau era dos funcionários públicos, dos adeptos da Naval e, depois do 25 de abril, de ativistas de posicionamentos mais à esquerda. A Brasileira tinha a preferência dos apaniguados do Ginásio e do Sporting Figueirense e de uma elite pequeno-burguesa de bancários e comerciantes, da parte antiga da Figueira. O Café Brasil (conhecido por Zé do Lixo) era o apoio privilegiado dos passageiros das camionetas da rodoviária, que ali paravam. No Bairro novo, o Nicola, a Cristal, a Império, o Oceano ou o Europa tinham frequentadores diferentes entre si e todos eles eram diferenciados da clientela conservadora da Caravela. O Arnaldo era um poiso muito peculiar, onde se bebia e petiscava ao balcão e o anexo da Mercearia Encarnação era um recanto mais sossegado e discreto, no fim da tarde. Havia ainda, nas imediações da estação, a “Capela do Sol”, do Manuel Lopes, que tinha estatuto de santuário de tertúlia bairrista (mas com acesso restrito) e, na rua da República, o Café Paris, este, indicado para cavalheiros mais carentes de mimos e licores…
Neste roteiro de lugares, estava subentendido um código definidor de identidades específicas, um respeito por territórios conotados e, também, a procura dos que nos estavam mais próximos. Em todos eles, na sua diversidade, havia tertúlias quase sempre masculinas e, aos domingos, eram transformados em seletos salões familiares de galão morno e torradas com manteiga. Tudo isto eu o digo, apenas a escorropichar a memória do meu tempo *, sabendo que há quem o tenha estudado com profundidade e rigor. Por exemplo Guida Cândido (hoje reputada investigadora nesta área do saber) tem um estudo publicado, em 2014, pelo município da Figueira, sobre a célebre Tertúlia “Coração, Cabeça e Estômago” fundada por António Augusto Esteves, nos anos 30, e compartilhada por vultos figueirenses como Joaquim de Carvalho, Cardoso Marta, António Piedade, Mário Augusto e outros, cuja constituição e atividade cultural e gastrónoma, expressa em atas descritivas, vale muito a pena conhecer. Posteriormente, já nos anos 80, também existiu o Círculo de Gastronomia e Cultura da Região da Figueira, sob a égide de João de Lemos, Marcos Viana e Albarino Maia, em cujo estatuto se pode ler “Círculo porque todos são iguais, usufruem os mesmos direitos e deveres, todos ao redor da mesa partilham do mesmo pão (…) e Cultura porque gastronomia também é cultura”.
Ora, o Picadeiro foi o seguidor desse espírito gregário e de convivência, para além do cuidado posto nas ementas de referência tradicional, graças a perseverança do Fernando e da Isabel, em parceria com as imprescindíveis cozinheiras, com destaque para a Cristina, e os sucessivos empregados como o Gervásio, o Renato, o Rafael ou o Marcos, que levavam até à mesa, travessas de apuradas tentações. Por isso, estes dois nossos amigos, para além de proprietários e gestores de um restaurante foram, implicitamente, agentes culturais e catalisadores da sociabilidade democrática figueirense, onde todos encontraram um acolhimento feito de qualidade, simpatia e descontração, numa pluralidade de género, idade ou condição. Nessa medida, foi um lugar de culto, um pára raios de amizades, um aconchego para algumas solidões, uma praça de intercâmbios, onde pontificaram figuras tutelares da mesa e da conversa, como o Mário Moniz Santos ou o Joaquim Gil que, lamentavelmente, já não estão aqui.
A própria escolha do nome do estabelecimento - Picadeiro - remete para o mais conhecido espaço público de sociabilidade da Figueira, o mais antigo segmento pedonal da rua Cândido dos Reis, outrora poeticamente denominada rua da Boa Recordação, a âncora do Bairro Novo de Stª Catarina, qual passerelle de acesso ao Casino Peninsular, quando este era um edifício digno e frequentado pelo glamour de veraneio e quando o espaço comum de circulação era respeitado, ao contrário da ocupação desenfreada que hoje lá vemos. E, curiosamente, o “Picas” fica na esquina da rua que evoca o Académico Zagalo, o jovem estudante que comandou a libertação do Forte de Stª Catarina do jugo napoleónico, em 1808, e a rua Dr. Francisco Dinis, homem de visão larga, que foi um dos fundadores da Companhia Edificadora Figueirense, no final do sec. XIX. Ou seja, está na confluência toponímica da ousadia, da liberdade, do empreendedorismo e do amor ao desenvolvimento da nossa terra. Ele há cada coincidência…!
O “Picadeiro” do Fernando e da Isabel, o nosso “Picas”, era, também, uma espécie de casa familiar comum, onde quase todos se conheciam, pelo menos de vista e onde perpassava uma solidariedade entre pares. No meu caso pessoal, posso confessar que todas as minhas namoradas tiveram que lá ir à amostra e com o intuito de que melhor entendessem o que as palavras e até os gestos, nem sempre conseguem explicar. Ora, esse estatuto de casa de família, íntima, acolhedora, despojada de formalismo, com as paredes cobertas de lembranças como um álbum de fotografias, era o que sabíamos que podíamos esperar do Picadeiro e por isso, o fazíamos, um bocadinho, coisa nossa. Eramos todos dali, como nunca o fomos de outros lugares onde nos sentámos à mesa para comer. Era o lugar a que sempre regressávamos, à espera de um sorriso conhecido (como no verso do Manuel António Pina “regresso devagar ao teu sorriso como quem volta a casa”…), da graçola repetida, da novidade segredada, do picante da crítica figueirense, da lamúria do estado das coisas, da partilha do sentimento. Ali celebrámos vitórias e enterrámos derrotas, discutimos vinhos - eu não, claro… - vaticinámos resultados desportivos e eleitorais e sempre nos despedimos uns dos outros, até à próxima vez. Recomendávamo-lo a outros amigos e conhecidos, com palavras de confiança e até o atrevimento de sugerir que, quando lá chegassem, dissessem que iam da nossa parte.
Isto não tem preço ! Isto não consubstancia uma mera transação comercial !
O segredo do Fernando e da Isabel, na criação e sustento deste ambiente diferenciado e tão humano, esteve na paixão com que se entregaram ao seu projeto e o bom resultado foi o que se viu, com claro e indelével contágio em todos nós. Faz-me lembrar aquela história que conta que o jovem Kaiser Guilherme II da Prússia terá perguntado ao seu mestre de equitação, o que era mais importante: se a técnica, os arreios ou a montada. E este ter-lhe-á respondido: - a paixão do cavaleiro, Sire…a paixão; o resto vem tudo atrás!
Sim, foi um privilégio de vida passarmos pelo nosso “Picas”, porque ali cada um foi o que já era e o que recebeu dos outros e, assim tendo sido, aqui estamos a agradecer, com um sentido abraço, a quem foi nosso cúmplice na construção de amizades para a vida e nos proporcionou momentos de genuína felicidade.
Esse é o verdadeiro sedimento das coisas essenciais !
Ficamos agora, momentaneamente, despernados, com a bússola sem norte, talvez até com sentimento difuso de orfandade, mas… como cantava o Fausto “atrás dos tempos vêm tempos e outros tempos hão-de vir!”
Eis, como um gajo que de comida e bebida nada sabe, teve o desplante de vos servir esta caldeirada de afetos, com tempero de alegria, uma pitada de memória e um toque discreto de nostalgia.
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E para acabar, parafraseando o Márinho, que de pequeno só tinha o diminutivo, digo agora:
“Ah meninos…!” vai um brinde à Isabel e ao Fernando!"
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