Por João Rodrigues
"Já perdi a conta ao número de pessoas que insultam Cavaco à boleia da sua provecta idade, uma prática verdadeiramente lamentável. Já perdi a conta ao número de pessoas que criticam Cavaco pela sua suposta incultura, uma prática verdadeiramente elitista e equivocada (publicou mais de uma dezena de livros...). Já perdi a conta ao número de pessoas que continuam a subestimar aquele que é, desgraçadamente, o mais bem-sucedido político da democracia portuguesa. Assim, não vamos lá. Precisamos de cabeça fria e de coração quente.
É claro que são mais os que denunciam, e bem, as contradições de Cavaco, o seu azedume e ressabiamento, as formas de economia política que favoreceu, os padrões desiguais, plutocráticos e dependentes a que os seus governos e influência deram origem. Valha-nos isso. Em algumas páginas de O Neoliberalismo não é um Slogan, adotei o método de levar a sério o intelectual público consequente, economista resolutamente político, apesar dos disfarces ideológicos, com uma escrita clara e depurada. Dois parágrafos (com referências omitidas):
Em 1997, um professor catedrático da FEUNL [Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa] e também da UCP [Universidade Católica Portuguesa], Aníbal Cavaco Silva, publicava um livro intitulado Portugal e a Moeda Única, com um prefácio de um entusiasmado Jacques Delors. Se Margaret Thatcher reconheceu no Reino Unido que Tony Blair tinha sido o seu maior triunfo, Cavaco Silva, a sua versão portuguesa, fez ali o mesmo, nos termos de uma cultura de economia política que ia para lá do keynesianismo da síntese que expôs nos seus manuais de política orçamental: «A mudança de Governo, em Novembro de 1995, não perturbou a paridade do Escudo, pois a preferência pela estabilidade nominal tinha sido já assumida pelo partido vencedor [PS] e a perspectiva de continuidade da política económica nas suas linhas fundamentais já tinha sido antecipada pelo mercado». A política económica era agora assumidamente antikeynesiana, dados os constrangimentos monetários supranacionais em construção.
Para Cavaco Silva não havia alternativa às Reformas da Década, título de outro livro, publicado dois anos antes e relevante para a compreensão das «13 grandes reformas» realizadas pelos seus governos, em contraste com «os excessos e desvarios do período revolucionário». Vistas de forma explicitamente articulada «pela sua incidência sobre as relações de fundo da economia e da sociedade portuguesas», estas reformas «constituíram um projecto coerente e global de modernização». Este projeto neoliberal, embutido numa narrativa de modernização, tinha, como sempre, uma dimensão negativa — com as reformas, «o colectivismo e a estatização instalados em 1975 começaram a ser destruídos», da reforma agrária, desadequada face à realidade da Política Agrícola Comum, às privatizações na indústria e nos serviços — e outra positiva: criar um «clima de confiança» e de «racionalidade económica», alinhando a economia política portuguesa com «o quadro da economia aberta e concorrencial que caracteriza a Europa comunitária». Isto implicava, entre muitas outras dimensões, alterar os direitos e as obrigações na relação social de fundo da economia, a laboral, aumentando de forma explícita a liberdade patronal e correlativamente atenuando «o proteccionismo exacerbado em prol do trabalhador por conta de outrem». Não por acaso, e como confessaria nas suas memórias, esta foi a questão que mais dores de cabeça lhe deu.
Faz realmente falta uma biografia intelectual e política de Cavaco e dos tempos neoliberais que são os seus. António Araújo, nas direitas, seria sem dúvida a melhor pessoa, pela sua proximidade e pelo que já nos deu a ver em alguns apontamentos ricos. Nas esquerdas, conheço várias, claro.
Cavaco faz parte da história deste presente em que insiste intervir. É nosso dever compreendê-lo, até para melhor o combater (e aos seus discípulos)."
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