José Mendes, via Diário de Notícias
«Não há outra forma de o dizer! A Conferência Episcopal Portuguesa e o Bispo José Ornelas devem estar a brincar com os portugueses. A conferência de imprensa de sexta-feira sobre os abusos sexuais sobre menores ficará na História como um dos pontos mais baixos, miseráveis mesmo, da Igreja em Portugal. A cúpula religiosa continua convencida de que, mais uma vez, o tempo funcionará como a esponja que absorve e apaga os seus pecados, como tantas vezes aconteceu no passado. Só que estes não são já os tempos da inquisição. Agora, a informação flui e a indignação não se abafa facilmente no perdão beato e gratuito.
Diz-se na política que há duas possibilidades para enfrentar um problema grave que se tornou público: ou se quer resolver a questão e se avançam com medidas musculadas e imediatas, ou se nomeia uma comissão de estudo para que tudo fique na mesma. Esta máxima tem, contudo, uma nuance: a comissão a nomear deve ser controlada pelo incumbente.
No caso dos abusos sexuais da Igreja, a Comissão Independente liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht chegou a conclusões e destapou a dimensão quantitativa de um fenómeno que se sabia existir há muitos anos. Nada ficou na mesma, pela simples razão de que a Comissão não era controlada pela Igreja. Os portugueses devem um agradecimento enorme e sentido a este grupo de pessoas, por se terem disponibilizado para uma tarefa de grande exigência, que executaram de forma competente e corajosa, nunca sucumbindo à tentação do protagonismo mediático.
Com a divulgação dos 512 casos validados - sublinho, validados - e a estimativa dos quase cinco mil abusos perpetrados ao longo das últimas décadas, que todos intuímos serem apenas a ponta do iceberg, a Igreja apressou-se a reagir. O que prometia ser uma boa notícia resultou num ultraje. A montanha pariu um rato, confirmando a estratégia de sempre: desproteger as vítimas em nome da salvaguarda da instituição Igreja Católica Apostólica Romana.
A conferência de imprensa da Conferência Episcopal foi um exercício cínico, onde sobrou em estratégia de sobrevivência o que faltou em responsabilização perante as vítimas.
Quando se esperava ação, a Igreja anuncia a criação de uma nova comissão - interna, porque a independente já fez o seu trabalho - para fazer diluir no tempo a investigação.
Quando se esperava o afastamento imediato dos padres, ainda no ativo, sinalizados pelas vítimas, sem prejuízo do seu direito à defesa, a Igreja recusa-se a fazê-lo e relativiza o valor das denúncias.
Quando se esperava o fim do encobrimento, a Igreja anuncia que vai remeter os casos para as Dioceses, devolvendo o assunto às teias locais de cumplicidades.
Quando se esperava a assunção de indemnizações às vítimas, a Igreja oferece um Memorial, como se não pudesse vender um par de edifícios, de entre os milhares que detém isentos de impostos, para compensar os abusados e as suas famílias.
Tenho ouvido em surdina que os abusadores sinalizados terão de ser protegidos, porque, se começam a falar, vão denunciar muitos outros, nomeadamente figuras na estrutura mais alta da hierarquia da Igreja. Terá de ser provado, mas não me surpreenderia.
Perante esta tragédia, que apelidei de "Holocausto escondido" numa outra crónica neste mesmo espaço, estranho o silêncio ensurdecedor da sociedade civil. Fazem-se manifestações contra tudo, mas a Igreja parece ter um escudo protetor. Até quando?»
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