"Esta maioria absoluta foi original. Aconteceu depois de seis anos no poder sem maioria. Surgiu no que parecia ser o fim de um ciclo, com um primeiro-ministro que se preparava para a gestão de uma saída que lhe permitisse dar um salto europeu. Nasceu cansada. Ela pode ter sido um presente envenenado para o PS e para o país. Apesar de garantir, teoricamente, mais estabilidade do que a ‘geringonça’, é muito mais instável. Porque a estabilidade política não depende de maiorias aritméticas, mas da estabilidade social que elas ofereçam. E de um propósito. Na ‘geringonça’, era reverter as imposições da troika. Na pandemia, era a emergência sanitária. Perante uma crise inflacionista e sem receitas diferentes da direita, qual é o propósito de António Costa?
Ao contrário do que acontecia na ‘geringonça’, de que era a alma, Pedro Nuno Santos era um corpo estranho neste Governo. Permanecer nele destruiria o seu caráter, porque Costa nunca desistiria de o fragilizar e humilhar. E destruiria o seu programa, porque corresponde a tudo o que se tem oposto. Não sai fortalecido e, longe do Governo, perde parte do poder que tem no PS. Se o Governo correr bem, estará longe e falhará a oportunidade. Mas tem 45 anos e muito tempo para regressar. Se correr mal, e há tanto por onde correr mal, será o mais bem colocado para assumir um caminho alternativo para os socialistas.
Não há, nem haverá enquanto Costa tiver as rédeas do poder, contestação interna ao líder. Mas há cada vez menos entusiasmo na sua defesa. É o cansaço, é a arrogância, é o que quiserem. Mas também é a sensação de que o PS está a fazer o que criticou a Passos. É por isso que a ofensiva da direita se concentra em casos. E defender o partido de casos quando falta uma causa desgasta a moral das tropas. Não é a primeira vez que o PS se verga aos dogmas económicos da direita, mas agora fá-lo depois de um Governo popular, com apoio de toda a esquerda e em que se envolveu em alguns confrontos ideológicos, uns mais reais do que outros.
António Costa está fechado no seu núcleo cada vez mais apertado. Mais do que João Galamba e Marina Gonçalves serem ou não “pedronunistas”, estas escolhas foram determinadas pela impossibilidade de ir para lá do que já existe no Governo. Por culpas próprias e porque todos os potenciais convidados perceberam que ir para a política é ir para a forca. Fora da política ninguém quer lá entrar, dentro dela ninguém quer entrar num Governo que se desfaz.
Porque não há alternativa, porque as alternativas são demasiado assustadoras, porque o Presidente o segura, Costa até se pode manter no poder mais quatro anos. Duvido. Mas extinguiu-se a sua estrela, talvez logo depois de conquistar a maioria absoluta. Porque ela foi determinada por uma conjuntura, não por uma vontade: o resto da esquerda estava condenada a escolher entre apoiar um Governo onde já não mandava ou provocar uma crise política de que seria a principal vítima; Rui Rio estava amarrado ao fantasma de Ventura, depois do erro que cometeu nos Açores, e as sondagens apontavam para um empate depois da vitória de Carlos Moedas em Lisboa, traumatizante para a esquerda. Não foi o entusiasmo dos eleitores que nos trouxe aqui. Foi o medo. E, nas mãos de um primeiro-ministro exausto com uma pandemia seguida de uma guerra, esta maioria absoluta em plena crise internacional pode ser fatal para o PS. Depois de Cavaco, o PSD só esporadicamente voltou “ao pote”. Só que agora é mais perigoso do que isso. Os tempos, na Europa e no mundo, são outros.
Apesar da inflação, da obsessão de Medina pelo corte à bruta do défice e da instabilidade interna do Governo, o PSD tem dificuldade em ultrapassar a barreira dos 30%, mesmo nas sondagens que dão uma queda do PS. Os que fazem análises simplistas imaginaram que se viesse alguém conotado com Passos Coelho esvaziaria o campo à sua direita. Se isso pode acontecer com o IL — esta crise é péssima para a sua agenda —, não acontecerá com o Chega. O PSD vai sinalizando casos, a extrema-direita vai ganhando com eles. Ainda por cima Montenegro não tem perfil para dar “banhos de ética”. Quanto à crise económica e social, que era onde podia disputar os votos ao PS, tem pouco a dizer. Primeiro, porque quando um passista diz que não cortaria nas pensões reais ninguém acredita. Depois, porque Montenegro é um taticista puro. Está à espera que a crise bata mais forte para culpar as escolhas do PS e nunca dizer quais seriam as suas, achando que o poder lhe vai cair no colo. Só que esse tempo acabou. Quem fatura com os escândalos é a extrema-direita. Quanto mais o Chega cresce nas sondagens, mais o PSD fica seu refém e mais assusta o centro que precisa de conquistar.
Como ficou provado há um ano, a função corretiva de uma crise política depende da existência de uma alternativa.
E ela depende de um líder convincente, da clareza na relação do PSD com a extrema-direita e da existência de um programa de Governo que o distinga. Sem alternativa, a crise social manifesta-se em pequenos ou grandes casos, distantes dos problemas das pessoas. Se houvesse uma crise política sem que estas condições estivessem satisfeitas, o mais provável é que se iniciasse um período de crises sucessivas, como outras democracias conheceram, atirando-nos para um impasse. Nos próximos anos, se o Governo se for autodestruindo sem que o PSD se consiga afirmar como alternativa, Portugal pode encaminhar-se para a desestruturação do seu sistema partidário, com um enfraquecimento dos dois principais campos políticos, como aconteceu em vários países europeus."
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