Crónica publicada na edição do mês de Novembro da Revista ÓBVIA
Era o Mercado. A Lota. Os autocarros na Praça Velha. Mercearias, tascas, lojas de produtos eléctricos, material para a pesca, drogarias, casas de fazendas, farmácias, bancos, livrarias e papelarias, barbearias, quiosques, companhias de seguros, sapatarias, retrosarias, stands de carros, de motas e de bicicletas, os armazéns de produto alimentares e de vinhos.
A vida na Figueira gravitava em torno da baixa. A grande superfície comercial era a Rua da República. Nos últimos 25 anos tudo mudou: embora a agonia já viesse um pouco mais de trás, a "baixa" figueirense morreu com o incêndio na Associação Naval 1º de Maio no dia 4 de Julho de 1997.
No final de 2022, a desertificação da "baixa" é visível a olho nu. O comércio tradicional foi cilindrado. Só o Pingo Doce tem três lojas na cidade, o Lidl duas, o Jumbo uma, o Continente duas, o Intermarché uma e o E.Leclerc uma. Já tivemos o Minipreço. Para o ano teremos o Mercadona.
Nada aconteceu, porém, por acaso. Tudo foi planificado na morte da das zona histórica da cidade. Os que, ao longo dos anos, foram derramando "lágrimas de crocodilo" com o encerramento de mais um café ou uma antiga loja na baixa da Figueira, esqueceram-se que esse desaparecimento não foi fruto de um qualquer acaso. Foi cuidadosamente premeditado e calculado por muitos. A saber: urbanistas, industriais, comerciantes, empresas de distribuição, lobistas, ministérios vários (obras públicas, planeamento, ordenamento do território, etc.) e presidentes de câmara e vereadores de urbanismo democraticamente eleitos.
Cada estabelecimento que fechou as portas obedeceu a um plano para transformar a organização do território urbano figueirense e, também da economia, com impactos sociais, culturais e ecológicos.
Este novo planeamento do território, que acabou por ser também uma nova forma de estratificar a sociedade, foi sempre apresentado como uma questão meramente económica e técnica.
Não política. Todavia, ainda que os políticos jamais o admitam (porque isso seria no fundo reconhecer a finalidade histórica das suas políticas), a concentração oligopolista do mercado único, que as suas democráticas leis favorecem, é a característica central da economia neoliberal.
A criação de zonas comerciais através de shoppings, hipermercados e grandes armazéns de distribuição, na periferia das cidades, enquanto cria novas centralidades desconectadas da cidade antiga, acaba por destruir as antigas centralidades que ficam transformados em autênticos desertos humanos. A cidade antiga definha à medida que a vida se transfere para as redes viárias que desaguam nos novos centros periféricos. Vejam em que é transformaram as circulares urbanas nos últimos anos. Vejam onde se instalaram as várias cadeias de distribuição, nacionais e internacionais, que abriram superfícies comerciais na Figueira da Foz.
O automóvel converteu-se no protagonista central desta urbanidade. Esta realidade, imposta em todos os países “ricos” a partir dos anos setenta do século passado, espalhou-se e acabou por chegar à Figueira da Foz.
Na Figueira, o transeunte foi substituído pelo condutor que todos os jovens sonham ser mal atingem os 18 anos.
Andar a pé ou de bicicleta na Figueira é desprestigiante.
Isso teve consequências. Os habitantes perderam um relacionamento diário com a cultura que caracteriza e define historicamente a cidade: a velha arquitectura, jardim, praças, esplanadas e cafés com vida colectiva, lugares de memória, museu, associações, bibliotecas, teatros.
O convívio nos espaços de socialização informal (nos cafés, mercearias, tabernas, mercado e no pequeno comércio) desapareceu quase por completo.
Nas grandes e médias superfícies o convívio e a partilha não existem.
Para que serviram os milhões gastos?
Tal como noutras cidades, na Figueira os poderes esvaziaram a baixa.
Nem para destino de mercadoria turística a baixa figueirenses tem utilidade.
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