Conforme se pode ficar a saber pelos livros, o bacalhau tem uma longa história à mesa dos portugueses. Existem notícias de campanhas nos bancos da Terra Nova ainda no Século XVI. Contudo, foi entre os anos 30 e 70 do século XX que a presença portuguesa foi mais numerosa e importante para a economia do nosso País.
O número de navios portugueses envolvidos nesta actividade na Terra Nova foi reduzida ao longo da história e só durante o século XX, com a Campanha do Bacalhau criada pelo Estado Novo, foi possível assistir ao nascimento de uma frota verdadeiramente importante.
Ao longo de séculos o bacalhau, seco ou salgado, tem sido presença à mesa dos portugueses. Muito desse bacalhau importado.
O Estado Novo pensou e pôs em prática uma política que beneficiava os armadores assegurando o financiamento, o fornecimento de mão-de-obra e outras facilidades que maximizaram os lucros e fizeram crescer a frota envolvida nesta pesca. Se no princípio do século XX havia pouco mais de uma dezena de navios na Terra Nova, esse número cresceu nos anos cinquenta até ultrapassar as 70 unidades.
Álvaro Garrido, no seu livro "Henrique Tenreiro — «patrão das pescas» e guardião do Estado Novo", coloca uma questão importante sobre essa figura "exaltante" que foi Henrique Ernesto Serra dos Santos Tenreiro, homem de acção, influências e poderes e uma das personagens mais detestadas e lisonjeadas do salazarismo": "importa perguntar donde lhe vinha a legitimidade política para actuar como autêntico chefe e patriarca do mundo marítimo e ao mesmo tempo como guardião do próprio Estado Novo. Foi essa legitimidade conquistada, delegada por Salazar ou terá resultado de ambas as coisas?"
"Henrique Tenreiro nunca foi ministro, secretário ou subsecretário de Estado. Menos ainda «delfim» de Salazar. Excedeu, porém, o poder e a influência da esmagadora maioria daqueles que o foram. Na verdade, um simples arrolamento das muitas funções que desempenhou até 1974, seja no sistema político (União Nacional, Assembleia Nacional e Câmara Corporativa), seja nas organizações milicianas do regime (Legião Portuguesa) ou, sobretudo, na administração das pescas, nunca deixará perceber os poderes que alcançou, a extrema influência que exerceu e o modo como teceu e sedimentou, dentro do regime, um subsistema de poder dotado de uma escassa vigilância institucional por parte do chefe do governo.
Até 1974 é Henrique Tenreiro que define "as directrizes da política nacional de pescas, controla e dispõe sobre todas as fontes de financiamento dos programas de renovação das frotas. De 1953 em diante preside ao conselho administrativo do Fundo de Renovação e Apetrechamento da Indústria da Pesca, o célebre FRAIP, donde provém boa parte do financiamento dos programas estatais de renovação das frotas de pesca.
Ao poder financeiro Tenreiro acrescenta extensos poderes de gestão empresarial de um expressivo sector público-corporativo das pescas que, por finais de 1960, engloba trinta «organizações», entre grémios, sociedades mútuas de seguros, cooperativas de aprestos e empresas dependentes da organização corporativa. Desde o tempo da guerra, Tenreiro impõe a concentração de capitais em sociedades de armadores controladas pelos grémios (casos da SNAB e da SNAPA), cria empresas formalmente privadas investidas de funções oficiais de intervenção no abastecimento de pescado (caso da Gel-Mar, criada em 1957), concessionárias, como a Docapesca (1966), e secções especializadas de grémios de vocação empresarial (Serviço de Abastecimento de Peixe ao País, em 1956).
A Organização das Pescas não era, porém, uma realidade unívoca. Ao poder tutelar de Henrique Tenreiro eximiam-se — sendo até hostis a qualquer interferência sua — os organismos de coordenação económica, Comissão Reguladora do Comércio de Bacalhau e Instituto Português de Conservas de Peixe, ambos territórios de «administração indirecta» do Estado.
Na obsessão de tudo enquadrar de modo a garantir que a «campanha do bacalhau» e o fomento das demais pescarias corressem sem sobressaltos, o Estado delega em Tenreiro uma importante função arbitral que o próprio interpreta de forma expedita e zelosa: cabe-lhe impor a colaboração institucional entre capital e trabalho, vigiar o comportamento de ambos e chamá-los a uma cooperação permanente com os poderes públicos e corporativos."
O "sucesso" do Estado Novo, passa pela acção de Henrique Tenreiro no controle das pescas nacionais.
"Quinto produtor europeu de bacalhau salgado seco em 1938, Portugal torna-se o primeiro produtor mundial vinte anos depois.
Uma cuidadosa representação ideológica da reabilitação da «faina maior» procurará totalizar as imagens do fenómeno e projectá-lo a nível interno e externo.
Nas suas inúmeras intervenções públicas, Tenreiro ostenta o sucesso e a grandeza da obra feita. O sector das pescas pertence-lhe, sendo apresentado como uma das principais realizações da obra de «ressurgimento nacional» conduzida pelo Estado Novo."
Henrique Tenreiro não descurava nada. Calhou-lhe em sorte ser "o vértice do arrojado esquema de assistência social dos trabalhadores do mar, porventura a mais emblemática realização do Estado Novo em matéria de «colaboração orgânica» entre capital e trabalho. Tenreiro foi vogal da Junta Central das Casas dos Pescadores desde 1938 e presidente da direcção do mesmo organismo de 1946 em diante. Cedo se converteu numa espécie de patriarca dos «trabalhadores do mar», que, em regra, nutriam por ele grande admiração.
O funcionamento da Organização das Pescas obedecia a uma certa circularidade. Os apoios de natureza social colocados à mercê dos pescadores e suas famílias, em particular as diversas vertentes da obra de assistência e o alcance — embora muito reduzido — dos benefícios de previdência, são inequívocos. Ambos excederam as modestas realizações das casas do povo e deixaram até hoje marcas nostálgicas nas comunidades marítimas. Instrumento da política salarial dos armadores e de vigilância do recrutamento dos homens que iam ao bacalhau, as casas dos pescadores procuravam harmonizar as velhas práticas de organização das pescarias artesanais — baseadas em relações de parentesco e na propriedade comum dos meios de produção — com as relações sociais de produção de tipo capitalista dominantes nas pescas do arrasto e do bacalhau.
O esquema de funcionamento desses «organismos de cooperação social», cuidadosamente programado por Teotónio Pereira, Rebelo de Andrade e pelo próprio Salazar, assenta numa lógica paternalista capaz de prevenir a desconfiança e a agitação indómitas das gentes do mar e de reforçar e tutelar essas ancestrais «sociedades-providência» do litoral. Ao próprio Estado são reservadas prerrogativas de enquadramento, fiscalização e repressão dos «marítimos».
Por iniciativa de Tenreiro, a obra assistencial das pescas atinge o paroxismo em 1955, data em que é lançado ao mar o «novo Gil Eannes». O serviço permanente de assistência aos pescadores portugueses nos «bancos» da Terra Nova garantido pelo moderno navio-hospital comporta uma dimensão material, «moral» e religiosa, não raro extensiva a frotas de países estrangeiros.
Ícone da grandeza da obra social das pescas, o Gil Eannes projecta além-fronteiras a pretensa superioridade moral do regime de Salazar."
Ao longo de séculos o bacalhau, seco ou salgado, tem sido presença à mesa dos portugueses. Muito desse bacalhau importado.
O Estado Novo pensou e pôs em prática uma política que beneficiava os armadores assegurando o financiamento, o fornecimento de mão-de-obra e outras facilidades que maximizaram os lucros e fizeram crescer a frota envolvida nesta pesca. Se no princípio do século XX havia pouco mais de uma dezena de navios na Terra Nova, esse número cresceu nos anos cinquenta até ultrapassar as 70 unidades.
Álvaro Garrido, no seu livro "Henrique Tenreiro — «patrão das pescas» e guardião do Estado Novo", coloca uma questão importante sobre essa figura "exaltante" que foi Henrique Ernesto Serra dos Santos Tenreiro, homem de acção, influências e poderes e uma das personagens mais detestadas e lisonjeadas do salazarismo": "importa perguntar donde lhe vinha a legitimidade política para actuar como autêntico chefe e patriarca do mundo marítimo e ao mesmo tempo como guardião do próprio Estado Novo. Foi essa legitimidade conquistada, delegada por Salazar ou terá resultado de ambas as coisas?"
"Henrique Tenreiro nunca foi ministro, secretário ou subsecretário de Estado. Menos ainda «delfim» de Salazar. Excedeu, porém, o poder e a influência da esmagadora maioria daqueles que o foram. Na verdade, um simples arrolamento das muitas funções que desempenhou até 1974, seja no sistema político (União Nacional, Assembleia Nacional e Câmara Corporativa), seja nas organizações milicianas do regime (Legião Portuguesa) ou, sobretudo, na administração das pescas, nunca deixará perceber os poderes que alcançou, a extrema influência que exerceu e o modo como teceu e sedimentou, dentro do regime, um subsistema de poder dotado de uma escassa vigilância institucional por parte do chefe do governo.
Até 1974 é Henrique Tenreiro que define "as directrizes da política nacional de pescas, controla e dispõe sobre todas as fontes de financiamento dos programas de renovação das frotas. De 1953 em diante preside ao conselho administrativo do Fundo de Renovação e Apetrechamento da Indústria da Pesca, o célebre FRAIP, donde provém boa parte do financiamento dos programas estatais de renovação das frotas de pesca.
Ao poder financeiro Tenreiro acrescenta extensos poderes de gestão empresarial de um expressivo sector público-corporativo das pescas que, por finais de 1960, engloba trinta «organizações», entre grémios, sociedades mútuas de seguros, cooperativas de aprestos e empresas dependentes da organização corporativa. Desde o tempo da guerra, Tenreiro impõe a concentração de capitais em sociedades de armadores controladas pelos grémios (casos da SNAB e da SNAPA), cria empresas formalmente privadas investidas de funções oficiais de intervenção no abastecimento de pescado (caso da Gel-Mar, criada em 1957), concessionárias, como a Docapesca (1966), e secções especializadas de grémios de vocação empresarial (Serviço de Abastecimento de Peixe ao País, em 1956).
A Organização das Pescas não era, porém, uma realidade unívoca. Ao poder tutelar de Henrique Tenreiro eximiam-se — sendo até hostis a qualquer interferência sua — os organismos de coordenação económica, Comissão Reguladora do Comércio de Bacalhau e Instituto Português de Conservas de Peixe, ambos territórios de «administração indirecta» do Estado.
Na obsessão de tudo enquadrar de modo a garantir que a «campanha do bacalhau» e o fomento das demais pescarias corressem sem sobressaltos, o Estado delega em Tenreiro uma importante função arbitral que o próprio interpreta de forma expedita e zelosa: cabe-lhe impor a colaboração institucional entre capital e trabalho, vigiar o comportamento de ambos e chamá-los a uma cooperação permanente com os poderes públicos e corporativos."
O "sucesso" do Estado Novo, passa pela acção de Henrique Tenreiro no controle das pescas nacionais.
"Quinto produtor europeu de bacalhau salgado seco em 1938, Portugal torna-se o primeiro produtor mundial vinte anos depois.
Uma cuidadosa representação ideológica da reabilitação da «faina maior» procurará totalizar as imagens do fenómeno e projectá-lo a nível interno e externo.
Nas suas inúmeras intervenções públicas, Tenreiro ostenta o sucesso e a grandeza da obra feita. O sector das pescas pertence-lhe, sendo apresentado como uma das principais realizações da obra de «ressurgimento nacional» conduzida pelo Estado Novo."
Henrique Tenreiro não descurava nada. Calhou-lhe em sorte ser "o vértice do arrojado esquema de assistência social dos trabalhadores do mar, porventura a mais emblemática realização do Estado Novo em matéria de «colaboração orgânica» entre capital e trabalho. Tenreiro foi vogal da Junta Central das Casas dos Pescadores desde 1938 e presidente da direcção do mesmo organismo de 1946 em diante. Cedo se converteu numa espécie de patriarca dos «trabalhadores do mar», que, em regra, nutriam por ele grande admiração.
O funcionamento da Organização das Pescas obedecia a uma certa circularidade. Os apoios de natureza social colocados à mercê dos pescadores e suas famílias, em particular as diversas vertentes da obra de assistência e o alcance — embora muito reduzido — dos benefícios de previdência, são inequívocos. Ambos excederam as modestas realizações das casas do povo e deixaram até hoje marcas nostálgicas nas comunidades marítimas. Instrumento da política salarial dos armadores e de vigilância do recrutamento dos homens que iam ao bacalhau, as casas dos pescadores procuravam harmonizar as velhas práticas de organização das pescarias artesanais — baseadas em relações de parentesco e na propriedade comum dos meios de produção — com as relações sociais de produção de tipo capitalista dominantes nas pescas do arrasto e do bacalhau.
O esquema de funcionamento desses «organismos de cooperação social», cuidadosamente programado por Teotónio Pereira, Rebelo de Andrade e pelo próprio Salazar, assenta numa lógica paternalista capaz de prevenir a desconfiança e a agitação indómitas das gentes do mar e de reforçar e tutelar essas ancestrais «sociedades-providência» do litoral. Ao próprio Estado são reservadas prerrogativas de enquadramento, fiscalização e repressão dos «marítimos».
Por iniciativa de Tenreiro, a obra assistencial das pescas atinge o paroxismo em 1955, data em que é lançado ao mar o «novo Gil Eannes». O serviço permanente de assistência aos pescadores portugueses nos «bancos» da Terra Nova garantido pelo moderno navio-hospital comporta uma dimensão material, «moral» e religiosa, não raro extensiva a frotas de países estrangeiros.
Ícone da grandeza da obra social das pescas, o Gil Eannes projecta além-fronteiras a pretensa superioridade moral do regime de Salazar."
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