quinta-feira, 10 de setembro de 2020

O drama e a dignidade de Né Ladeiras

Via Luís Osório

1.


Escrevo este postal do dia enquanto oiço “Sonho Azul”.

Né Ladeiras canta que “trocava a vida toda pela vida deste amor, meu sonho azul” e eu penso que a vida é, muitas e muitas vezes, inclemente, cruel, cega.

2.
Né Ladeiras é um nome importante da história da música portuguesa. De uma família de artistas assumiu muito jovem protagonismo na Brigada Vítor Jara e na Banda do Casaco. Colaborou com os Trovante e os Heróis do Mar e a sua carreira a solo fez o seu nome resistir até hoje.

Né Ladeiras.

Não me parece que haja alguém da minha geração, ou das gerações anteriores, que não saiba quem é ou que não tenha ouvido falar.

3.
Há menos de uma semana, Né Ladeiras apelou na sua página de facebook.

Não tinha emprego e não tem dinheiro ou forma de continuar a pagar as suas contas.

Um problema nas cordas vocais impediu-a de continuar a cantar e hoje e, apesar de todas as tentativas, teve a coragem de denunciar a quase impossibilidade de uma mulher com 60 anos conseguir ter um emprego.

Trabalhou num museu em Torres Novas num restaurante a fazer o que lhe pediam, em duas empresas de limpeza e duas pastelarias. Ao fim de poucas semanas agradeceram-lhe, mas outra pessoa, quarenta anos mais nova, acaba por ocupar o seu lugar,

4.
Né Ladeiras teve a coragem de usar a sua página de facebook para nos dizer: olhem, não consigo mais. Ajudam-me?

Fê-lo mantendo a sua dignidade – “Não quero nenhum coitadismo, nenhuma pena”

Mantendo a esperança – “Quero viver e sentir que valeram a pena todos este revezes”.

Contando de si sem complacências ou paninhos quentes – “Tenho procurado trabalho, sim, porque mil vezes viver dele do que ser dependente da ajuda de outros. Não falo por orgulho, mas dignidade”.

5.
Mora em Coimbra.

Deu-nos muito...

compreendo-a e antecipo que poderia acontecer comigo. Que poderia acontecer com qualquer um de nós.

Ver-me sem nada. Ver-me com uma mão à frente e outra atrás como o meu pai quando ficou doente.

Recordo bem, tinha pouco mais de vinte anos. De repente, vi o meu pai ter de viver em função da solidariedade de amigos ou da Santa Casa da Misericórdia. E fazê-lo com uma dignidade imensa. Nunca o admirei tanto como nesses anos de carência absoluta.

Impossível, também por isso, ficar indiferente ao apelo de Né Ladeiras. À sua dignidade, à sua coragem, à sua esperança.

E no seu exemplo abraçar os ”velhos” de 60 anos que parecem já ser vistos como mortos para quem tem o poder de empregar.

Pessoas que se sentem novas, mas que todos os dias se confrontam com o olhar dos outros, com a arrogância dos outros, com a recusa dos outros.

És velha.
Estás gasta.
Não tens energia.
Já te olhaste ao espelho?

Não dizem desta maneira, mas é isso que lhes dizem sem necessidade de usar palavras.

Não interessa o que fizeram, o que são, o que poderiam aportar.

É triste e não vem nas notícias, mas nem por isso é menos importante.

Puxo para trás o “Sonho Azul” e vou escutá-lo em silêncio. Como uma oração que dedico aos que, como ela, vivem numa encruzilhada que estavam longe de merecer.

1 comentário:

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