quinta-feira, 28 de maio de 2015

A miséria alheia criou novas oportunidades...

1 comentário:

  1. A Arte de Furtar28 maio, 2015 18:46

    A caridadezinha!

    «Não sei se há humilhação maior do que ter de estender a mão suja, que salta de um corpo e uma roupa também sujos, pedindo, com o corpo inclinado e o olhar perdido e suplicante: "Qualquer coisinha, tenho fome." Se é uma criança, com uma mãozinha pequenina, um velho, um deficiente, suplicando "por caridade, por caridade", parte-se-me a alma. Sinto-me muito envergonhado por mim e pela sociedade, e dou, numa indizível atrapalhação, pois precisaria de dizer-Ihes que não é por caridade, mas por dever. E desaparecer.»
    Anselmo Borges - “Qualquer coisinha, tenho fome” / DN on line 04 janeiro 2014

    O Estado como garante e protector de direitos sociais universais está há muito tempo sob o fogo cerrado dos que aspiram a regressar a um passado de exploração do trabalho, sem limites e sem constrangimentos. Uma parte significativa da população trabalhadora, assalariada e independente, com rendimentos pouco acima do baixo salário mínimo nacional, começou a ser excluída de prestações como o abono de família, apoio social escolar, complemento social do idoso, subsídio social de desemprego, rendimento social de inserção, isenção de taxas moderadoras para desempregados e pensionistas, comparticipação nos medicamentos, no transporte não urgente de doentes, passes sociais nos transportes, entre outros. Esta “obra-prima” social, iniciada no último governo PS, revelam não apenas a apetência dos grandes interesses na transformação do Estado Social em negócio altamente lucrativo, mas ainda uma estratégia de esvaziamento das funções que o Estado hoje assegura nessa área.

    E pela Europa, caso recente da Inglaterra, do senhor David Cameron, com a «inovadora» operação da «Big Society», operação de dissimulação humanista que também pede mais sociedade, mais voluntarismo, mais caridade e menos Estado, dando mais um passo, tal como cá, na concretização da desresponsabilização do Estado no cumprimento das suas funções sociais, transformando direitos sociais em esmolas.

    Em Portugal, as posições da economista Isabel Jonet, que há muito se sabe de que lado da barricada é que se situa: o da caridadezinha mais básica. É este caldo de cultura de regresso da compaixão da esmolinha, tornada política oficial e feita de públicas virtudes e subterrâneas crueldades, que está em marcha. Não o disse, mas não é difícil de concluir o seu pensamento: há que forçar o pobre a trabalhar «porque é malandro»! A solidariedade é coisa séria, ela é um dos fundamentos essenciais na construção de uma sociedade mais justa, uma sociedade que não se constrói retirando direitos para oferecer regimes de excepção a pobres.
    Dizia D. Manuel Martins que para combater a pobreza se devia «vender o ouro que anda ao pescoço dos santos nas procissões». Não precisamos de chegar a tanto, deixemos os santos em paz. Bastaria uma outra política económica orientada para o crescimento e a criação de emprego, uma mais justa distribuição da riqueza que valorizasse os salários e as pensões, o reforço da segurança social pública com a valorização das prestações sociais e a promoção de eficazes serviços públicos, assentes numa justa política fiscal e de financiamento da segurança social.

    Bastaria recordar, sempre, as palavras do poeta Manuel da Fonseca (mais um convenientemente silenciado):
    Dona Abastança -

    «A caridade é amor»
    Proclama dona Abastança
    Esposa do comendador
    Senhor da alta finança.
    Família necessitada
    A boa senhora acode
    Pouco a uns a outros nada
    «Dar a todos não se pode.»
    Já se deixa ver
    Que não pode ser
    Quem
    O que tem
    Dá a pedir vem.
    O bem da bolsa lhes sai
    E sai caro fazer o bem
    Ela dá ele subtrai
    Fazem como lhes convém
    Ela aos pobres dá uns cobres
    Ela incansável lá vai
    Com o que tira a quem não tem
    Fazendo mais e mais pobres.
    Já se deixa ver
    Que não pode ser
    Dar
    Sem ter
    E ter sem tirar.
    Todo o que milhões furtou
    Sempre ao bem-fazer foi dado
    Pouco custa a quem roubou
    Dar pouco a quem foi roubado.
    Oh engano sempre novo
    De tão estranha caridade
    Feita com dinheiro do povo
    Ao povo desta cidade.

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