O mundo que temos é este em que vivemos. Portanto: «não importa para onde tentamos fugir, as injustiças existem em todo o lado, o melhor é encarar essa realidade de frente e tentar mudar alguma coisa.» Por pouco que seja, sempre há-de contribuir para aliviar...
«Não sei se há humilhação maior do que ter de estender a mão suja, que salta de um corpo e uma roupa também sujos, pedindo, com o corpo inclinado e o olhar perdido e suplicante: "Qualquer coisinha, tenho fome." Se é uma criança, com uma mãozinha pequenina, um velho, um deficiente, suplicando "por caridade, por caridade", parte-se-me a alma. Sinto-me muito envergonhado por mim e pela sociedade, e dou, numa indizível atrapalhação, pois precisaria de dizer-Ihes que não é por caridade, mas por dever. E desaparecer.» Anselmo Borges - “Qualquer coisinha, tenho fome” / DN on line 04 janeiro 2014
O Estado como garante e protector de direitos sociais universais está há muito tempo sob o fogo cerrado dos que aspiram a regressar a um passado de exploração do trabalho, sem limites e sem constrangimentos. Uma parte significativa da população trabalhadora, assalariada e independente, com rendimentos pouco acima do baixo salário mínimo nacional, começou a ser excluída de prestações como o abono de família, apoio social escolar, complemento social do idoso, subsídio social de desemprego, rendimento social de inserção, isenção de taxas moderadoras para desempregados e pensionistas, comparticipação nos medicamentos, no transporte não urgente de doentes, passes sociais nos transportes, entre outros. Esta “obra-prima” social, iniciada no último governo PS, revelam não apenas a apetência dos grandes interesses na transformação do Estado Social em negócio altamente lucrativo, mas ainda uma estratégia de esvaziamento das funções que o Estado hoje assegura nessa área.
E pela Europa, caso recente da Inglaterra, do senhor David Cameron, com a «inovadora» operação da «Big Society», operação de dissimulação humanista que também pede mais sociedade, mais voluntarismo, mais caridade e menos Estado, dando mais um passo, tal como cá, na concretização da desresponsabilização do Estado no cumprimento das suas funções sociais, transformando direitos sociais em esmolas.
Em Portugal, as posições da economista Isabel Jonet, que há muito se sabe de que lado da barricada é que se situa: o da caridadezinha mais básica. É este caldo de cultura de regresso da compaixão da esmolinha, tornada política oficial e feita de públicas virtudes e subterrâneas crueldades, que está em marcha. Não o disse, mas não é difícil de concluir o seu pensamento: há que forçar o pobre a trabalhar «porque é malandro»! A solidariedade é coisa séria, ela é um dos fundamentos essenciais na construção de uma sociedade mais justa, uma sociedade que não se constrói retirando direitos para oferecer regimes de excepção a pobres. Dizia D. Manuel Martins que para combater a pobreza se devia «vender o ouro que anda ao pescoço dos santos nas procissões». Não precisamos de chegar a tanto, deixemos os santos em paz. Bastaria uma outra política económica orientada para o crescimento e a criação de emprego, uma mais justa distribuição da riqueza que valorizasse os salários e as pensões, o reforço da segurança social pública com a valorização das prestações sociais e a promoção de eficazes serviços públicos, assentes numa justa política fiscal e de financiamento da segurança social.
Bastaria recordar, sempre, as palavras do poeta Manuel da Fonseca (mais um convenientemente silenciado): Dona Abastança -
«A caridade é amor» Proclama dona Abastança Esposa do comendador Senhor da alta finança. Família necessitada A boa senhora acode Pouco a uns a outros nada «Dar a todos não se pode.» Já se deixa ver Que não pode ser Quem O que tem Dá a pedir vem. O bem da bolsa lhes sai E sai caro fazer o bem Ela dá ele subtrai Fazem como lhes convém Ela aos pobres dá uns cobres Ela incansável lá vai Com o que tira a quem não tem Fazendo mais e mais pobres. Já se deixa ver Que não pode ser Dar Sem ter E ter sem tirar. Todo o que milhões furtou Sempre ao bem-fazer foi dado Pouco custa a quem roubou Dar pouco a quem foi roubado. Oh engano sempre novo De tão estranha caridade Feita com dinheiro do povo Ao povo desta cidade.
Neste blogue todos podem comentar... Se possível, argumente e pense. Não se limite a mandar bocas. O OUTRA MARGEM existe para o servir caro leitor. No entanto, como há quem aqui venha apenas para tentar criar confusão, os comentários estão sujeitos a moderação, o que não significa estarem sujeitos à concordância do autor deste OUTRA MARGEM. Obrigado pela sua colaboração.
A caridadezinha!
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Anselmo Borges - “Qualquer coisinha, tenho fome” / DN on line 04 janeiro 2014
O Estado como garante e protector de direitos sociais universais está há muito tempo sob o fogo cerrado dos que aspiram a regressar a um passado de exploração do trabalho, sem limites e sem constrangimentos. Uma parte significativa da população trabalhadora, assalariada e independente, com rendimentos pouco acima do baixo salário mínimo nacional, começou a ser excluída de prestações como o abono de família, apoio social escolar, complemento social do idoso, subsídio social de desemprego, rendimento social de inserção, isenção de taxas moderadoras para desempregados e pensionistas, comparticipação nos medicamentos, no transporte não urgente de doentes, passes sociais nos transportes, entre outros. Esta “obra-prima” social, iniciada no último governo PS, revelam não apenas a apetência dos grandes interesses na transformação do Estado Social em negócio altamente lucrativo, mas ainda uma estratégia de esvaziamento das funções que o Estado hoje assegura nessa área.
E pela Europa, caso recente da Inglaterra, do senhor David Cameron, com a «inovadora» operação da «Big Society», operação de dissimulação humanista que também pede mais sociedade, mais voluntarismo, mais caridade e menos Estado, dando mais um passo, tal como cá, na concretização da desresponsabilização do Estado no cumprimento das suas funções sociais, transformando direitos sociais em esmolas.
Em Portugal, as posições da economista Isabel Jonet, que há muito se sabe de que lado da barricada é que se situa: o da caridadezinha mais básica. É este caldo de cultura de regresso da compaixão da esmolinha, tornada política oficial e feita de públicas virtudes e subterrâneas crueldades, que está em marcha. Não o disse, mas não é difícil de concluir o seu pensamento: há que forçar o pobre a trabalhar «porque é malandro»! A solidariedade é coisa séria, ela é um dos fundamentos essenciais na construção de uma sociedade mais justa, uma sociedade que não se constrói retirando direitos para oferecer regimes de excepção a pobres.
Dizia D. Manuel Martins que para combater a pobreza se devia «vender o ouro que anda ao pescoço dos santos nas procissões». Não precisamos de chegar a tanto, deixemos os santos em paz. Bastaria uma outra política económica orientada para o crescimento e a criação de emprego, uma mais justa distribuição da riqueza que valorizasse os salários e as pensões, o reforço da segurança social pública com a valorização das prestações sociais e a promoção de eficazes serviços públicos, assentes numa justa política fiscal e de financiamento da segurança social.
Bastaria recordar, sempre, as palavras do poeta Manuel da Fonseca (mais um convenientemente silenciado):
Dona Abastança -
«A caridade é amor»
Proclama dona Abastança
Esposa do comendador
Senhor da alta finança.
Família necessitada
A boa senhora acode
Pouco a uns a outros nada
«Dar a todos não se pode.»
Já se deixa ver
Que não pode ser
Quem
O que tem
Dá a pedir vem.
O bem da bolsa lhes sai
E sai caro fazer o bem
Ela dá ele subtrai
Fazem como lhes convém
Ela aos pobres dá uns cobres
Ela incansável lá vai
Com o que tira a quem não tem
Fazendo mais e mais pobres.
Já se deixa ver
Que não pode ser
Dar
Sem ter
E ter sem tirar.
Todo o que milhões furtou
Sempre ao bem-fazer foi dado
Pouco custa a quem roubou
Dar pouco a quem foi roubado.
Oh engano sempre novo
De tão estranha caridade
Feita com dinheiro do povo
Ao povo desta cidade.