«Os liberais até dizer chega parecem-se com alguns dos bilionários que apoiaram Trump sobretudo por causa da sua agenda interna de intensificação da neoliberalização, de resto em curso. Nunca levaram a sério a questão do protecionismo trumpista. Perante a política comercial protecionista, que pode colocar em causa um elemento importante do neoliberalismo externo, descobrem-se subitamente críticos de Trump. Aproveitam para retomar todo um conjunto de mitos sobre a relação entre “comércio livre”, prosperidade e paz, convocando os seus santos padroeiros.
Citam Milton Friedman, que apoiou a ditadura de Pinochet, Margaret Thatcher, que também o fez, para lá de se ter lançado numa guerra por causa das Falkland, Ronald Reagan, imperialista consumado e que aumentou brutalmente as despesas militares e Fréderic Bastiat, que escreveu umas vulgaridades liberais num tempo de imperialismo colonial, essencial para a expansão do “comércio livre” no longo século XIX.
Os liberais até dizer chega, em coerência, estão agora na linha da frente da defesa da corrida armamentista na UE, não o esqueçamos. Vale tudo para destruir uma das melhores garantias de paz e de prosperidade partilhada: os Estados sociais robustos.
De resto, ofuscam outros quatro padrões muito relevantes da história da economia política internacional.
Em primeiro lugar, os países, do Reino Unido aos EUA, só se tornam defensores do comércio dito livre quando se sentem com capacidades produtivas suficientes, desenvolvidas graças ao protecionismo. O protecionismo foi aí um dos instrumentos para o desenvolvimento de longo prazo.
Em segundo lugar, a concorrência de todos contra todos, associada ao “comércio livre”, aumenta os desequilíbrios comerciais, a inimizade e o ressentimento, estando associado a conflitos e guerras desde a sua origem até ao seu fim.
Em terceiro lugar, o protecionismo dos anos 1930 foi uma reação defensiva à Grande Depressão. Esta última foi causada, isso sim, pelo liberalismo económico, dos mercados financeiros sem trela ao padrão-ouro, passando pela austeridade. A superação da Depressão exigiu superar as instituições internacionais do liberalismo económico, que de resto se tinham em larga medida autodestruído.
Em quarto lugar, o mercado livre é uma pura invenção ideológica. Sendo a economia inevitavelmente um sistema regulatório, que exige sempre a mobilização dos poderes públicos, a questão principal é que grupos vêem as suas liberdades aumentadas e que grupos vêem as suas liberdades diminuídas pelas mudanças nas regras do jogo, ou seja, estamos sempre a redistribuir liberdades, sendo que não há uma métrica única, nem as liberdades são do mesmo tipo.
Não sei, ninguém pode saber, qual a configuração e efeito finais das tarifas de Trump. Sabe-se que parecem contraditórias com a sua agenda interna. Talvez sejam sobretudo um instrumento grosseiro para obter concessões comerciais, como sublinhou Vicente Ferreira ontem. A UE aposta tudo nisso. A China não, até porque sabe que é o alvo principal dos EUA e que isto não começou agora, nem vai acabar aqui.
Realmente, se fosse para reindustrializar, Trump teria de reforçar as capacidades de planeamento do Estado norte-americano, em modo de New Deal, o contrário do que está a fazer, como também assinalou James Galbraith há umas semanas.»
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