Marcelo Rebelo de Sousa, que auto-confinou por vontade presidencial em Março de 2020, havia meia centena de casos e menos de uma mão de mortos, e que logo no desconfinamento andou de norte a sul do país a ver se a água das praias estava boa de sal, enquanto bebia imperais em alegres cavaqueiras grupais e partilhava bolas de Berlim com putos que lhe apareciam pela frente, depois de ter salvo duas jovens de morrerem afogadas com água pelo joelho; Marcelo Rebelo de Sousa que "não é especialista em regras sanitárias", depois de ter apelado a muitos milhares na Feira do Livro de Lisboa e na Fórmula 1 no Algarve, enquanto perorava sobre a "percepção negativa" que as pessoas têm da Festa do Avante!, Marcelo Rebelo de Sousa que explicou a todos os portugueses como haviam de contornar as restrições do Natal, que tanto se "empenhara" em salvar, para logo a seguir fazer uma visita de campanha eleitoral a um lar de idosos, sem saber o resultado de um dos milhentos testes Covid que já fez desde que a pandemia deu à costa, com as televisões a passarem imagens da urgência do hospital de Setúbal a rebentar pelas costuras, com doentes arrumados pelo chão onde havia espaço, e do hospital de Torres Vedras, com ambulâncias com cinco horas de fila de espera, enquanto aproveitava para passar um ralhete aos portugueses por não levarem o confinamento a sério; Marcelo Rebelo de Sousa, depois de toda a pressão que fez sobre o Governo para um segundo confinamento, com encerramento das escolas, no dia em que toma posse para novo mandato presidencial vai a assapar para o Porto para um passeio pelo bairro do Cerco, perante a estupefacção os portugueses confinados, incrédulos nas janelas e varandas, rodeado por uma multidão de jornalistas e por outros mais afoitos que viram aqui o sinal de partida para o que aí vem. A seguir vamos todos salvar a Páscoa."
António Agostinho, o autor deste blogue, em Abril de 1974 tinha 20 anos. Em Portugal havia guerra nas colónias, fome, bairros de lata, analfabetismo, pessoas descalças nas ruas, censura prévia na imprensa, nos livros, no teatro, no cinema, na música, presos políticos, tribunais plenários, direito de voto limitado. Havia medo. O ambiente na Cova e a Gala era bisonho, cinzento, deprimido e triste. Quase todas as mulheres vestiam de preto. O preto era a cor das suas vidas. Ilustração: Pedro Cruz
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