quinta-feira, 3 de março de 2016

O voto e a lucidez

Este blogue, pelos vistos, anda a incomodar!.. 
Ainda bem, pois um blogue também pode servir para isso...
Em democracia, não é normal colocar interrogações e levantar questões?..
Ou, a nossa participação como cidadãos,  estará reduzida ao boletim de voto?
José Saramago, no Ensaio sobre a lucidez (2004), tem uma interessante abordagem do assunto.
"(…) Em geral não costumo votar, mas hoje deu-me para aqui, A ver se isto vai servir para alguma coisa que valha a pena, Tantas vezes foi o cântaro à fonte, que por fim lá deixou ficar a asa, No outro dia também votei, mas só pude sair de casa às quatro, Isto é como a lotaria, quase sempre sai branco, Ainda assim, há que persistir, A esperança é como o sal, não alimenta, mas dá sabor ao pão, durante horas e horas estas e mil outras frases igualmente inócuas, igualmente neutras, igualmente inocentes de culpa, foram estimuladas até à última sílaba, esfareladas, viradas do avesso, pisadas no almofariz sob o pilão das perguntas, Explique-me que cântaro é esse, Porque é que a asa se soltou na fonte, e não durante o caminho, ou em casa, Se não era seu costume votar, porque é que votou desta vez, Se a esperança é como o sal, que acha que deveria ser feito para que o sal fosse como a esperança, que é verde, e o sal, que é branco, Acha realmente que o boletim de voto é igual a um bilhete de lotaria, Que era o que estava a querer dizer quando disse a palavra branco, e novamente, Que cântaro é esse, Foi à fonte porque estava com sede, ou para encontrar-se com alguém, A asa do cântaro é símbolo de quê, Quando deita sal na comida, está a pensar que lhe deita esperança, Porque é que traz vestida uma camisa branca, Afinal, que cântaro é esse, um cântaro real ou um cântaro metafórico, E o barro, que cor tinha, era preto, era vermelho, Era liso, ou levava desenhos, Tinha incrustações de quartzo, Sabe o que é o quartzo, Já ganhou algum prémio na lotaria, porque é que na primeira votação só saiu de casa às quatro horas, quando já não chovia há mais de duas, Quem é a mulher que está ao seu lado nesta imagem, De que riam com tanto gosto, Não lhe parece que um acto de votar deveria merecer de todos os eleitores com sentido de responsabilidade uma expressão grave, séria, compenetrada, ou considera que a democracia dá vontade de rir, Ou talvez pense que dá vontade de chorar, Que lhe parece, de rir, ou de chorar (…)"

1 comentário:

A Arte de Furtar disse...

Incomoda?
Que elogio...

"Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais."

Alberto Caeiro - "Eu Nunca Guardei Rebanhos"