sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

A propósito da falta de sucesso das livrarias...

Não consigo pensar em cegos sem me lembrar duma frase de Benjamin Péret (cito-a de memória, como acontece com tudo o resto): “Não é verdade que a mortadela é fabricada por cegos?” Para mim, esta afirmação, sob a forma de pergunta, é tão certa como uma verdade do evangelho. Claro que algumas pessoas podem achar absurda a relação entre os cegos e a mortadela, mas para mim é o exemplo mágico duma frase totalmente irracional que é brusca e misteriosamente fulminada pelo estrondo da verdade.

Luis Buñuel, O meu último suspiro


Na passada terça-feira,  o escritor de sucesso António Tavares, no diário As Beiras, publicou a crónica que pode ser lida na imagem da direita. 
Como escreve no seu blogue  Fernando Campos, "trata-se de uma lamentação pela morte das livrarias.
O cronista, que sabe exactamente o número de livrarias que existem em Portugal (e quantas fecharam em Espanha, quantos livros se editaram e se importaram etc., etc., ) - lamenta muito o seu triste fim – refere mesmo que “há hoje cidades que já não têm livrarias na verdadeira acepção da palavra”; mas depois sugere que não deixa de se viver por isso. A seguir interroga-se sobre como se repõe a “identidade que se vai perdendo e que se sabia ter qualidades” e remata com uma graçola sonsa: diz que lhe perguntam onde se vende o “seu” livro e que, “desfasado” que é do mundo, responde perplexo: “nas livrarias!”.
Reparem como o político florentino que subiu a pulso, estrategicamente, com o discurso sempre semeado de números exactos, em ponto de rebuçado, naquela ênfase de rigor tão do agrado do seu público alvo, os pacóvios, é afinal tão “desfasado” do mundo. Nunca vi um escrito que ilustrasse tão bem um espírito."

A prosseguir o seu texto, o Fernando conta um episódio divertido e peculiar.
"Três dias antes porém, de esta crónica me aparecer à frente para que a bebesse com os olhos, estava eu a aparar umas guias que as minhas roseiras lançam para a rua quando se acercou de mim o carteiro e me perguntou, um tanto constrangido, se eu quereria por obséquio adquirir um livro uns tantos euros abaixo do valor cobrado nas livrarias; e, tirado de dentro de um envelope, mostrou-me um exemplar do prémio Leya deste ano, O coro dos defuntos, de António Tavares. Explicou-me depois, embaraçado, que agora aquilo fazia parte das suas obrigações. Declinei educadamente e o pobre homem lá se foi embora, com o dever cumprido."

Continuando a citar a prosa deliciosa do Fernando.
"Não sei, devo dizer, se António Tavares é um bom escritor. Adaptei, faz já quase trinta anos, dois contos seus (um deles muito bom) para banda-desenhada e fiz a cenografia da sua primeira peça levada à cena (bastante mázinha por sinal, um monólogo em verso branco vagamente existencialista do qual não percebi peva) porque há coisas que, com vinte anos, se fazem por amizade. Com o fim da nossa amizade perdi, confesso, o interesse por tudo o que lhe concerne, incluída a sua obra, digamos assim, literária. 
O que me obriga, de vez em quando, a manifestar-me a seu respeito é o facto de ele se ter tornado um político relevante (é vereador da cultura e vice-presidente da minha autarquia) e de o seu pensamento, ou pelo menos a sua opinião pública, digamos assim, me aparecer à frente dos olhos de cada vez que me pretendo informar sobre os factos da terra que habito.
Não sei, por isso, se o que Tavares escreve hoje é literatura. Mas se for o que publica no “jornal” As Beiras, parece-me mais mortadela."

Depois de ler o saboroso texto do Fernando, dei comigo a pensar.
Ainda sou do tempo em que, alguns, ousavam  ensaiar o discurso anti partido socialista figueirense.
Mais tarde, porém, o sucesso passou, precisa e exactamente, por se alimentarem do poder que diziam abjurar. 
António Tavares, é um desses.
Que mais não seja, por isso, merece admiração pelo sucesso...
Ao longo da vida, apesar de tudo, sempre fui aprendendo algumas coisitas.
Uma delas é esta: não é possível argumentar com o sucesso.
Quando analisamos um caso de sucesso político, que teve um desfecho positivo e feliz, apesar dos desvios aos princípios que foram cometidos durante o caminho, é inútil apontar esses desvios porque, em última análise, alguém vai sempre invocar o sucesso do resultado para demonstrar que não houve qualquer desvio ou erro.
O sucesso arrasa quaisquer desvios ou erros que, por ventura, tenham sido cometidos durante o processo.
Por causa disso, quando asso sardinhas, não mudo de roupa até ao fim do dia: ter a roupa a cheirar a sardinha assada, é meio caminho andado para fazer sucesso junto das gatas aqui da Aldeia.

3 comentários:

Anónimo disse...

Tem toda a razão meu caro sr. em estar incomodado de as livrarias estarem a morrer mas deixe que lhe diga no cargo que ocupa devia preocupá-lo bem mais a morte da praia da claridade, mas parece que não e nem o ridículo de crescerem tomates no areal o incomoda assim como não o deve incomodar muito o aspecto deplorável que a praia apresenta vista da avenida.
Mas tem razão o importante é que hajam livrarias para se poderem vender livros.

Anónimo disse...

É pena que não lamente também que a cidade tenha ruas com piso intragável.Que os repuxos dentro e envolventes ao jardim estejam a cair de podres e não trabalhem.Que a parte baixa e bem histórica da cidade esteja ao abandono.Que há esplanadas de cafés que invadiram os passeios.Que se plantaram pinheiros pela onda alerta costeiro e não tenha aparecido para uma crónica.
Mas realmente o que importa são as livrarias claro que se não houver livrarias como é que a gente vai vender os livros que escreve?

A Arte de Furtar disse...

A parábola do político camaleão
O estudo da biologia do camaleão revela algumas semelhanças com um outro tipo, o animal racional (Aristóteles) emotivo que é o político. Tanto um como o outro, utilizam a língua para caçar as presas.
Não existe acção política sem ideologia. A ideologia política não é algo de opcional, uma coisa que podemos ter ou não, à qual podemos renunciar em nome do pragmatismo ou da tecnocracia ou em nome das portas fechadas ou abertas…


“Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda

Há sempre qualquer coisa que está pra acontecer
Qualquer coisa que eu devia perceber
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda” –

Inquietação – José Mário Branco