António Agostinho, o autor deste blogue, em Abril de 1974 tinha 20 anos. Em Portugal havia guerra nas colónias, fome, bairros de lata, analfabetismo, pessoas descalças nas ruas, censura prévia na imprensa, nos livros, no teatro, no cinema, na música, presos políticos, tribunais plenários, direito de voto limitado. Havia medo. O ambiente na Cova e a Gala era bisonho, cinzento, deprimido e triste. Quase todas as mulheres vestiam de preto. O preto era a cor das suas vidas. Ilustração: Pedro Cruz
sábado, 7 de abril de 2007
Recordar a irreverência do Zé Martins...
Já aqui falámos do Zé...
Hoje, vamos recordar um episódio que dá conta do seu talento irreverente e espontâneo.
Corria o ano de 1982, aí pelo mês de Fevereiro. O país político era abalado por uma afirmação do então deputado do CDS, João Morgado. No decorrer de um debate, o referido deputado fez a seguinte afirmação, que deixou de boca aberta o Povo da Nação: “O ACTO SEXUAL É PARA FAZER FILHOS”.
Se a tirada do deputado Morgado ficou nos anais do parlamento, não menos célebre ficou a resposta, em poema, da notável poetisa e, então, deputada do PSD, Natália Correia. Rezava, assim, a resposta em poema que fez rir as bancadas parlamentares e boa parte do país:
“Já que o coito
- diz Morgado -
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou - parca ração! -
uma vez. E se a função
faz o orgão - diz o ditado -
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.”
O Zé Martins, sempre atento, oportuno, contundente, irreverente e mordaz, na edição de 12 de Março desse mesmo ano de 1982, glosou o tema, como só ele seria capaz de o fazer. Esse número do Barca Nova deu-nos cá um gozo...Lembro-me, perfeitamente, do Zé com o seu jeito, peculiar e exagerado - único, para contar estórias oralmente, adornando-as e enriquecendo-as com os seus excessos de pormenores deliciosos!.. Escrevia muito bem o Zé, mas ouvi-lo era um privilégio Leiam esta inspiração do Zé.:
“Saber se o sr. João Morgado
Deputado da Nação
É ou não homem capado
Para além de deputado
Tornou-se agora a questão.
Mulher sagaz e de veia
Perita na dedução
A deputada Correia
Vê a coisa muito feia
Pró deputado João.
Cá por nós, acreditamos
Que estas coisas embaraçam.
Mas também não duvidamos
Que posição não tomamos
Sem que outras provas se façam.
O deputado João
Suspeito de ser capado
A nosso ver deve então
Exibir o galardão
Para ser examinado.
E exibi-lo no parlamento
Perante os pares que lá estão.
Na tribuna ou no assento
(Consoante o regimento
Que contemple essa função)
Vai ser um acontecimento
Ver o João em São Bento
C’o argumento na mão.
- Vamos a isso, João?”
Na altura, “cozinhar” o Barca Nova todas as semanas, nas tardes de sábado e nas noites de segunda, terça e quarta, para à quinta, dobrar, endereçar e pôr no correio, não era tarefa mole, pois todos tínhamos os nossos trabalhos...
Rever textos, fazer as notícias e as reportagens, paginar, ver provas ( e quão exigente era o Zé na caça à gralha...), tudo isto era feito com alegria e constituía uma descoberta sensacional e uma bela lição de jornalismo – e de vida – dada pelo Zé a três então inexperientes aprendizes de jornalismo: eu, o Pedro Biscaia e o Alexandre Campos.
Decorridos 25 anos, recordar essas reuniões fascinantes, a que por vezes se juntava o Mário Neto e o Velho Joaquim Namorado, agora que o Zé já cá não está, pois há sete anos, de forma inesperada resolveu ir viajar, é um prazer tão grande como reler os seus escritos.
Zé: até qualquer dia e um grande abraço.
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4 comentários:
Recordar o"Chefe" ou o "General", como carinhosamente o tratávamos, é um acto de dor, a de ter perdido um amigo.
Ser intransigente e implacável, ao mesmo tempo que nos dava a entender que tínhamos ali o irmão mais velho, são duas facetas, aparentemente antagónicas, que recordamos do Zé. Recordo ainda a abreviatura de Xana, que ele inventou: passei a ser o Xaninho.
Da sua irreverência e repentismo, aí vai mais um exemplo:
No trajecto de casa para a tipografia ele passava pelo Passeio Infante D. Henrique. Então chegou à tipografia, cerca das 10 da noite, estava eu a ultimar a edição e faltava-me um espaço. Esperava por alguma informação ou telefonema, uma notícia de última hora. O Zé diz-me para não me preocupar, que já tratava disso. Estavamos em campanha eleitoral, foi o que o inspirou: passados uns escassos minutos estava a edição pronta, Na última página, sob o título "A Fechar", escreveu o Zé:
"Primeiro com ar grave, depois com ar alegre e desportivo, o dr. Mário Soares anda por aí colado às paredes, em tábuas, em árvores, nos piços,em tudo afinal onde a cola acabou por aderir. Umas vezes por cima, outras por baixo, também aparece ora o Mota Pinto ora o Lucas Pires, aquele em pose de Cardeal Richelieu, este assim a modos de quem está a recomendar o uso da pasta Colgate. Só na Farmácia Jardim não enganam ninguém:estão todos colados uns aos outros.
Boa Xaninho, ri-me a bom rir com este texto que já não me recordava!
Que bela experiência de "fazer coisas" pelo simples prazer de o fazer! Que horas de aprendizagem nós tivémos, ainda imberbes! Que vontade de revisitar esses dias de utopia, com a ilusão de que estávamos ali mesmo a construir, na escrita, futuros colectivos! Que abraço eterno e firme nos sobrou até hoje!
Um abração Pedro. Quando é que cá vens?
Estamos desde o Verão à tua espera.
Eis ALGUÉM que me foi dado conhecer por interpostas pessoas. Facto, que indicia, que não querendo, era de facto ALGUÉM, que vivia para os outros e com os outros. Coisa rara. E um Abraço enviado aqui,das "catacumbas" coimbrãs :-», para o Xaninho, responsável pela memória que desenhei, da importância do "Zé" Martins como PESSOA e do "Barca Nova" no jornalismo figueirense.
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